segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

poesia do litoral

Oh, naufrágio, oh, sol, presa complacente da
tinta possessiva com que tudo se inscreve.
Todo o livro é um livro de bordo.

Edmond Jabès


O título “Poemas” evoca os elementos provisórios de uma obra marcada indelevelmente pelo precário - este precário que em Paulo Plínio Abreu constitui o início e o fim de uma viagem que nunca inicia nem termina, antes está fadada a ser uma espécie de emblema da corrosão, da doença, da ruína. Não é uma poesia da contemplação, a isto ela se esquiva; é uma poesia do litoral, do lançar-se, da navegação. Entretanto, as bordas que aqui se esgarçam de súbito se comprimem num acontecimento de vertigem, incêndio, naufrágio. Poesia e narrativa épica reconstituem o uivo aterrador da destruição. A primeira palavra, do primeiro verso, desta série de vinte e um poemas que o poeta organizou, estabelece de imediato a unidade e a ordem de uma história que é a repetição e a diferença de um mesmo desastre mítico-lendário: “Barco” rumo a Tróia incendiada. Uma viagem armada para o combate fatal. No entanto o que a poesia celebra aqui, é a força guerreira dos que sucumbem pelo caminho, dos que não chegam, nem regressam. Do comedor de fogo e do Polichinelo. Uma tripulação sem nome. Sobre ela a calamidade de noites e ventos que não cessam. A viagem torna-se exílio e punição; a vitória, o duplo da derrota. Uma travessia que não se completa. Paulo Plínio Abreu multiplica uma vez mais o pensamento antigo de uma Grécia a que todos retornam – de Baudelaire a Jorge Luis Borges, de Murilo Mendes a Mário Faustino – para dar forma a um herói moderno. Ligado a essa tentativa, nosso narrador-poeta não se define pela rota nem da Ilíada nem da Odisséia. Ele proclama a metáfora do limiar. Se a beleza de Helena promove a errância dos homens, ela mesma converte‐se num impedimento. “Diante de tua beleza as coisas se apagaram. /És o golfo onde escondi meu barco doente/e a cripta onde deporei meus mortos...”. O malogro aqui se antecipa e se renova, fazemos parte dele, a cidade sitiada e tomada onde vivemos, nossa sensibilidade bélica. Rastejamos a tempestade.
Ney Paiva

O barco e o mito


Barco de madeira construído no ar para a viagem do mito.
Nau feita de vento
e força de um pensar antigo.
Tua quilha tem o sabor do sal das águas fundas
e de um peixe que atravessou a garganta de um morto.

Na tua vela tracei o emblema da rota
que um dia imaginei olhando a Grande Ursa
nos caminhos da noite. Nau sem porto,
as águas te seduzem e contigo me arrastam.
Barco feito de mito,
construído no espaço
com a matéria das nuvens.
Nau feita com o bico de uma ave
e um desejo de fuga.
Nau que a ti mesma te armaste
do nada que podemos.
Nave do nada feita e quase ave
desfeita em vôo puro e quase mito.

Ode na praia do Leme


A noite é tua prostituta do Leme.
E com ele dissolves a pobreza dos homens
no mito de tua carne.
O vento vem do mar e dos navios que passam
carregados de vento e sal para as Antilhas.
A morte vem das ilhas
trazida pelo vento desta noite
nesta praia deserta.
A noite é tua, nela está o emblema
da tua posse esquiva, e os seres se incorporam
ao casco dos navios
e sem partirem vão‐se para sempre.

Poema

Diante de tua beleza as coisas se apagaram.
És o golfo onde escondi meu barco doente
e a cripta onde deporei meus mortos.
Ave e orvalho, mulher e cornamusa.
Somos irmãos no mito
e eis que te refaço
com a seiva de meu ser.
De ti recolho este secreto espanto,
este secreto mel.
Em ti refaço a viagem não feita, o riso não rido e o amor não amado.
És a beleza mesma adiada no tempo
e nos outros a necessidade de sua perfeição.

Madrugadas de um estranho encanto


Madrugadas de um estranho encanto
que me comoveis
como o vento e o sossego
das tardes de um sempre
e das noites que nunca
descobri no puro ou impuro canto.
A luz escarlate
baixava como um inseto
na varanda perdida.
Um pássaro morto caía de súbito entre plantas
de um antanho desejo
que o orvalho molhava
e era espanto mesmo
no corpo da noite
despovoada e fria
com as agonias
de um frustrado espasmo.

Elegia


Por que de estranhas terras eu te acompanho lua solitária
E durmo ouvindo os teus passos de anjo pela noite
Quando os velhos desejos desaparecidos voltam à flor das ondas
E a noite do exílio levanta as suas árvores de sonho,
De um tempo imemorial eu acompanho as tuas viagens,
Tu que vestes os mortos com o que cai do coração dos vivos
Eu te acompanho pelo céu escuro
Sentindo como tua a vertigem da morte que anuncias.
Tu que de um tempo longo ergues teus olhos sobre o tempo
E apenas náufragos aportam a esse país estranho em que tu vives.
Ouço tua voz cair no mar da madrugada
Para que o céu se deite sobre ti como um sepulcro
E as estrelas brilhem nesta noite escura como incêndios.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

O comedor de fogo

Veio do comedor de fogo e de seus milagres a esperança impossível.
Do comedor de fogo e de seus milagres à porta de sua tenda
Onde dormiam os cães numa nuvem de moscas.
Veio do comedor de fogo a esperança dos mundos impossíveis.
Veio dessa lembrança hoje apagada pelo tempo o sombrio desejo de evasão.
Veio do comedor de fogo a visão da vida aberta como um grande circo
E o convite irreal para a distância onde se esconde a morte.
Até o amor se perdeu nessa lembrança de um estranho comedor de fogo
E toda a infância confundiu-se com os milagres desse saltimbanco
E de seus cães doentes à porta de sua tenda.

O polichinello


O seu segredo era como o dos outros.
Seus olhos eram de vidro azul
e na boca vermelha
o riso da ironia.
O humor profundo, amargo e doloroso
vinha de sua boca;
o riso da sabedoria
e do desespero
gritava da sua boca aberta em sangue.
O riso do polichinelo
vinha do coração ausente, era uma advertência.
Era apenas o riso
e falava de um mundo
maior que sua alma.

Viagem ao sobrenatural

Mundo pressentido e oculto
na palavra anjo à porta de Tobias,
na viagem não realizada mas da qual se trouxe
um pássaro que não pertence a nenhuma fauna
e um peixe de fogo;
na palavra mãe onde há o mistério
do cotidiano incompreendido;
na palavra mosca onde se faz presente
o desespero da escolha entre o mal e o deserto;
na palavra rosa,
corpo e essência do efêmero.
Na imagem vista no espelho,
a boca e os olhos na voragem do tempo
oferecem o amor, puro e inacessível.
A voz presa no disco da vitrola
é apenas o outro lado eterno.

Soneto

Antes pudesse o Aquário refletir-se
nas águas do teu pranto, o teu olhar semita
conduzir-me como nos céus o vento
arrebata uma estrela e anuncia
morte, desolação, naufrágio, amor.
Mas preso no sargaço escuro
de um póstumo canto, ajunto fragmentos
de mim, de minha infância, e o gosto
de uma majestosa e angélica beleza.
A salvação não quero, antes perder-me
e achar-me como hoje repartido
em fragmentos de amor na púrpura da tarde,
reconhecido em múltiplos cantares,
ou nas ardências de um postremo dia.

Poema primitivo

Não esculpirei meu sonho sobre as nuvens
pois que elas se perdem nos ermos do céu
e um dia voltam para molhar a terra.
Nem sequer o amianto me parece seguro
para guardar desse fogo a ânsia mais veemente
ou o delírio mais casto.
A poeira se esvai
e os que passarem a levarão consigo
embaixo dos sapatos
como os mortos a receberão sobre os olhos.
Na pele de um deus
não estará seguro
pois breve é o respeito dos homens
e o amor das mulheres.
Talvez na asa direita de um pássaro
ou no seu bico agreste.
No fundo mesmo do mar não estará seguro
pois que os ventos poderão arrebatá-lo
para atrelar sua força à cauda dos veleiros.
E assim não haverá lugar
onde escondê-lo.
Sonho que esculpirei então no tempo
que não é dos homens
e que morre e renasce a cada instante
no peito donde brota
a chama deste amor tão puro.

Poema sobre a morte

Ela virá dos mares.
Sentiremos o mistério dessa atração irresistível.
Sentiremos o frio em que desabrochará essa flor maravilhosa
Que perdida no inverno era o destino informe e desconhecido.
Ela virá dos mares como as perdidas aventuras
E será o convite fatal.

Ode à minha alegria

De ti que poderei fazer se me dominas
como a viagem ao viajante
e os ventos do mar aos pássaros que voam?
De um território vens, profundo e largo,
em ti caminham vozes
que outras vozes acordam, em ti caminham dores
há muito apaziguadas.
Em ti passam corcéis de fogo
que sobre a pele deixam a marca do silêncio,
em ti flutuam sonhos.
De onde vens, para onde vais quando me tocas
com a ponta dos teus dedos?

Fragmento

Na rosa de ontem
vi o mistério do corpo
fechado aos segredos da morte.
No efêmero eterno
um dia concebido
vibrante e inconstante
o segredo de estar em véspera de sono.
A delícia do amor
jamais celebrada,
as mãos que se entregaram
as lembranças que vêm de longe
frias como a noite.
O desejo que cresce mudo sem palavras.
As chaves do mundo
para sempre perdidas.

Suicídio

Inevitavelmente os cães uivarão dentro da noite
e o vento sacudirá as árvores frias do jardim quando tu fores.
E o medo virá como um abraço inevitável.
Os vermes subirão da terra e se postarão nos degraus da escada à espera da morte.
A música que todos ouvirão será a tristeza
e o silêncio chegará ninguém saberá donde:
todas as portas estarão fechadas,
todos os homens estarão dormindo.

A estranha mensagem

Ele veio nas trevas quando havia silêncio
e de novo trouxe a ternura dos galhos tombando para a madrugada.
Eu subi do fundo do mar como um líquen liberto
para ouvir a sua voz que era imensa
e trazia a ansiedade das flores explodindo,
mas só vi o silêncio enorme como a noite.
E ela chorou dentro de minha tristeza
porque era como a revelação do que eu havia perdido.
Ainda trazia nas mãos o frio dos troncos úmidos da noite,
e nos olhos a humildade da terra encharcada de chuva.

Um dia eu descerei verticalmente e para sempre
ao fundo deste mar onde ela mora
como um barco de pescadores desaparecidos.

Recomposição do enigma

Venho do fulgor de tua beleza
e espero o eclipse que deveria ter-te anunciado.
Sou quem não foi senão espanto
mas quem tua beleza bebeu e embriagou-se
num porto dessa Tróia incendiada.

Lembranças de um espantalho

Lembro-me que era um espantalho
e que balançava no ar
no caruncho da tarde o seu frágil corpo de pano
tanto mais terrível quanto mais humano
pois algo havia de humano
no ar da tarde ou no espantalho
que me lembro ter visto.
Era só um espantalho
agitado no ar pelo vento da tarde.
A chuva caía-lhe na cabeça grotesca.
Um verme subia no seu corpo
para roer-lhe a madeira.
E eu quis pousar no seu ombro
o meu cansaço de ave.
Mas algo havia no seu ser
que me aterrou.

Envoi

Nesta noite tosca
recolho os pássaros feridos,
as estrelas mortas
e as naus que encalham
no país do algures.
Nesta noite vazia
recolho o que perderam
as aves no seu vôo,
o que os peixes trouxeram,
o que as águas à praia
lançaram inutilmente:
o resto da salsugem
dos mares apagados;
o corpo dos suicidas,
os resíduos humanos
o que é reles ou torpe
conchas do mar espesso,
cabeças de hipocampos,
o vento que violento
soprar do céu noturno;
o nada que nos seres
se encorpa e faz-se engulho;
o corpo do espantalho
e o negrume da noite
para fazer com isto
uma dádiva inútil
numa hora vazia.

Poema

No puro o impuro
na solidão a voz
no morto a vida extraordinária
me sacudiram
como um dia as grades do colégio
sacudimos com as mãos.
Pássaros voavam em direção à noite.
Éramos puros
Mas na pureza a impureza
em nós estava
e nos guiava por um caminho maravilhoso.
Não existiam sinais no céu
para guiar-nos.

Noite

A noite sacudia as árvores dormidas
e afagava a plumagem dos pássaros nos galhos.
Lembro que o vento espertava o silêncio no ar
e na quilha dos barcos afogados.
Noite que chamava os mortos
e fazia chegar a mim o seu chamado
do ermo em que jazia.
Noite em que do céu caiu o fruto da vida e não colhemos.
Noite despojada de todos os artifícios.
Despregada da grande árvore do nada
e carregada de tudo
em viagem para um tempo sem fim.

Canção azul

O tempo chegará
da palavra invisível
transformada em pássaro
e que acorde lembranças
há muito esquecidas
no coração sepulto.
O tempo afinal virá
o tempo sem limites
em que os enforcados
mortos e vivos
e uma lua romântica
das noites da infância
voltem a dançar
no ar da manhã.

um desejo de fuga

Quem é que assim nos virou, de tal forma que, em tudo o que
façamos, estamos sempre na atitude de alguém que parte?

Rilke [As Elegias de Duíno]


Paulo Plínio Abreu nos evoca a uma sedutora variação de imagens, inclusive a não imagem, em uma escrita que transita pelo limiar do desconhecido, de onde nos traz os outrosvários da sua poesia, em pele, rostos, revelando uma escrita da intensidade que transita por fora da unidade e do discurso da representação se espraiando em lances de multiplicidades por onde atravessa o Polichinelo, o Comedor de Fogo, o Espantalho: uma verdadeira miríade. Figuras aliviadas do peso da identidade gravitando por fora de qualquer enunciado, fora do discurso ou reivindicação. Paulo Plínio nunca foi o poeta do lugar, passou alhures às alegorias do regional, sendo desde sempre o grande escritor da linguagem, do pensamento que combate em favor da palavra viva, criativa; da poesia lapidada de fio a fio, sem que combate em favor da palavra viva, criativa; da poesia lapidada de fio a fio, sem deus, sem razão, erguida na esteira da mobilidade. Assim o poeta esculpiu sua obra, escrevendo até o extremo de uma atmosfera outra, num desejo intenso de fuga; escrevendo até alcançar a escrita essencial. E tudo suportou para se aproximar do horizonte dessa experiência, tudo, até mesmo o risco da morte: Um dia eu descerei verticalmente e para sempre/ao fundo deste mar onde ela mora/como um barco de pescadores desaparecidos [A estranha mensagem]. Ler Paulo Plínio é confessadamente navegar no coração desse risco e experimentar em cada frase o limiar do seu vôo: Eu subi do fundo do mar como um líquen liberto/para ouvir a sua voz que era imensa/e trazia a ansiedade das flores explodindo,/mas só vi o silêncio enorme como a noite./ E ela chorou dentro de minha tristeza/porque era como a revelação do que eu havia perdido [A estranha mensagem]. É desse lugar que jorra a força da sua poesia, é desse silêncio que cintila a potência da sua voz; voz atravessada entre o suave e o precário; voz de um homem que não se viu, que tombou nas entranhas da literatura e desapareceu na noite. Paulo Plínio Abreu foi um dos poucos a responder ao anseio de Paul Valery: morrer sem confessar. Morreu em silêncio, nem uma palavra, poucas pistas, somente a sua poesia. Poesia que nunca cedeu.


nilson oliveira